At the end of the page, you find a translator for your language .


domingo, junho 27, 2010

     Inauguramos a seção Raras Mulheres, ou Mulheres Raríssimas,
com Jacinta Passos [ Vida e Obra ], apresentada por sua filha Janaina Amado , neste artigo inédito*escrito especialmente para Literacia.


O coração militante de Jacinta Passos
[Jacinta Passos- 1940]
"Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti." 
[Jacinta Passos]

[Berila e Manoel Caetano Passos com os filhos: (em pé, da esquerda para a direita) Manoel Caetano Filho, Dulce, Maria José, Jacinta e Lourdes]


por Janaína Amado*
Nascida em lar conservador do interior da Bahia – em Cruz das Almas, Recôncavo baiano – no início da Primeira Guerra mundial (1914), quando o Brasil ainda vivia resquícios da monarquia e da escravidão, Jacinta Passos aos poucos construiu para si um destino diferente daquele que lhe fora reservado. Professora, jornalista, poeta, usou sua inteligência e seu talento literário para denunciar injustiças sociais, especialmente a opressão contra as mulheres, propondo um mundo melhor, mais justo e livre, que acreditava possível construir. Sua poesia foi política, mas não panfletária: Jacinta Passos inspirou-se nas cantigas populares da sua infância e terra natal para compor poemas líricos que tocavam o coração das pessoas, instigando-as a seguir em frente rumo a uma sociedade mais humana. O escritor e jornalista Florisvaldo Mattos, estudioso da obra  de Jacinta Passos denominou sua poética de “humanismo militante”.
Após a infância no interior, Jacinta transferiu-se com a família para Salvador, onde se formou, em 1932, na Escola Normal da Bahia, especializando-se em Matemática. Trabalhou como professora, contratada pela própria Escola Normal. Durante a adolescência e primeira juventude, foi muito religiosa, praticando a religião com uma entrega total; dedicava-se com fervor às orações, buscando uma união direta com Deus.
Autora de poesias desde a adolescência, publicou o primeiro livro junto com o irmão, em 1942. Nossos poemas (Salvador, A Editora Bahiana) traz numa primeira parte, "Momentos de Poesia", poemas de Jacinta, e numa segunda, "Mundo em Agonia",  poemas de Manoel Caetano Filho. O volume mereceu boas críticas na imprensa, firmando os nomes dos dois poetas no meio intelectual baiano. Os poemas de Jacinta Passos neste livro têm cunho religioso (principalmente os iniciais), expressando sua procura mística; há também poemas de amor, enquanto os últimos poemas apresentam cunho social.
Desde o início da Segunda Guerra Mundial, especialmente desde a entrada do Brasil na guerra (1942), Jacinta Passos desenvolveu intensa atividade jornalística, escrevendo sobre temáticas sobretudo sociais. Foi uma das poucas mulheres da Bahia, à época, a assumir posições políticas públicas, publicando artigos e poesias no jornal O Imparcial  (onde editava também semanalmente uma “Página Feminina”, ampliando muito os assuntos habitualmente reservados às mulheres), e na revista cultural Seiva.
A atividade jornalistica colocou Jacinta em contato estreito com os movimentos sociais, especialmente os movimentos de esquerda, os quais exigiam a entrada do Brasil na guerra, assim como o final da ditadura do Estado Novo e o retorno do país à democracia. Jacinta participou de passeatas, comícios e encontros públicos com estes fins, aproximando-se de estudantes e intelectuais comunistas. Ela ingressaria no Partido Comunista do Brasil (PCB) apenas em 1945 - nele permanecendo até morrer -, mas desde alguns anos antes passou a ter o comportamento e o pensamento influenciados pelo PCB. Abandonou a religião, passando a considerá-la uma fonte de alienação.
Em 1945, em São Paulo, já casada (com o escritor e jornalista James Amado, irmão de Jorge Amado), Jacinta Passos publicou seu segundo livro, Canção da Partida (São Paulo, Edições Gaveta),  que muitos consideram sua melhor obra. Ilustrado com desenhos do grande artista Lasar Segall, o volume recebeu críticas muito elogiosas dos mais expressivos críticos e intelectuais da época, entre outros Antonio Candido, Aníbal Machado, Gabriela Mistral, José Geraldo Vieira, Mário de Andrade, Roger Bastide e Sérgio Milliet, firmando o nome da poeta no cenário nacional.
Em São Paulo, Jacinta continuou a militar politicamente, segurando as bandeiras comunistas. Retornou a Salvador em 1945, com o marido, para candidatar-se a deputada federal constituinte pelo PCB e, no ano seguinte, a deputada estadual, pelo mesmo partido. Não sendo eleita, retirou-se com o marido e a filha pequena para uma fazenda isolada, no sul da Bahia, onde escreveu os poemas do terceiro livro, lançado em 1951, Poemas políticos (Rio de Janeiro, Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil). Também bem recebido pela crítica, o livro contém poemas políticos na primeira parte, e  poemas líricos na segunda, além de uma seleção de poesias do livro anterior.
Em 1951, quando residia com a família no Rio de Janeiro, Jacinta sofreu grave crise nervosa, com delírios persecutórios. Esteve internada em sanatórios do Rio e na Clínica Psiquiátrica Charcot, em São Paulo, sendo diagnosticada como portadora de esquizofrenia paranóide, considerada então doença progressiva e irrecuperável. Nessas internações e nas seguintes, foi tratada à base de choques elétricos, injeções de insulina e barbitúricos. Apesar disso, quando internada no Charcot, Jacinta escreveu seu quarto e último livro, A Coluna (Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Fº Editor), publicado em 1957, um longo e belo poema épico sobre a trajetória da Coluna Prestes.
Separada do marido e sem a guarda da filha, Jacinta voltou a residir em Salvador, onde trabalhou no jornal comunista O Momento. Após nova internação, mudou-se em 1962 para Aracaju, onde desenvolveu intensa atividade política até 1965, ano em que foi presa pelo Exército, como subversiva. Transferida para um sanatório da cidade, Jacinta viveu interna até falecer, em 1973, aos 57 anos de idade. Nesses anos finais, escreveu constantemente, tanto poemas quanto prosa.
Os livros de Jacinta Passos estavam esgotados há muitos anos. Mas acaba de ser lançada sua obra completa, em verso e prosa – incluindo os inéditos, produzidos nos últimos anos de vida –, ao lado da biografia, caderno de fotos, fortuna crítica e novos ensaios críticos, no livro Jacinta Passos, coração militante, publicado pelas Editora Corrupio e EDUFBA, de Salvador. O volume, com 580 páginas, embelezado por onze desenhos de Lasar Segall, foi organizado pela historiadora e escritora Janaína Amado, filha de Jacinta.

 A Poesia de Jacinta Passos
[Jacinta, no dia de sua formatura na Escola Normal da Bahia, em 1932]
 
Cantiga de Ninar

(variação sobre um tema do Recôncavo baiano)

Senhora Onda do Mar
vestida de verde com franjas de luar,
ninai meu filhinho fechai seu olhinho
seu soninho velai
que mamãe precisa fazer com papai,
Senhora Onda do Mar,
um planeta novo de neném morar.

Su su su
Quem dorme na lagoa
 é sapo-cururu.

 
                                                           (extrato do poema, do livro Canção da Partida)

Diálogo na sombra

– Que dissestes, meu bem?

Esse gosto.
Donde será que ele vem?

Corpo mortal.
Águas marinhas.

Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas amor, do mar ou de mim?

(do livro Canção da Partida)
 [Solteira, em Salvador, na década de 1930]


1935

Tenso como rede de nervos
pressentindo ah! novembro
de esperança e precipício.

Fruto peco.

Novembro de sangue e de heróis.

Grito de assombro morto na garganta,
soluço seco dor sem nome.  Ferido.
De morte ferido. Como um animal ferido. Luta
de entranhas e dentes.   Natal.
Sangue. Praia Vermelha.

Sangue.
Sangue. É quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro dos cárceres,
nas ilhas
e nos corações que a esperança guardaram.


(do livro Canção da Partida)


 A Prosa de Jacinta Passos


A caricatura do nazismo
    O “grande ditador”, esse filme humaníssimo que Chaplin realizou, vale mais do que apologia contra o nazismo. É um filme que deve ser visto pelas multidões. Ignorantes e cultos, homens, velhos e crianças, qualquer criatura humana o entende e sai de lá com uma compreensão mais lúcida da realidade de nosso mundo. O homem eterno com as suas grandezas e misérias, seu heroísmo, seus ridículos e suas esperanças. Compreensão do nosso mundo atual, o processo de renovação histórica que se opera dentro dele, elementos em decomposição que condicionaram o maior fenômeno reacionário da história, e elementos puros, forças intactas do mundo de amanhã.
    A ambição anormal de Hinkel, erguendo-se sobre as ruínas de pós-guerra, as figuras-símbolo dos seus ministros, os dois ditadores discutindo a invasão de Austerlitz como dois adolescentes exibindo valentias. No meio de toda essa humanidade desumanizada, movem-se as figuras dos simples, símbolos do mundo: oprimidos e sofredores, o barbeiro desmemoriado, o bom velho judeu, o vulto de Hannah, tão puro e tão lindo que, de dentro da miséria do gueto, parece esperar contra toda a esperança. Esses, são seres humanos, os outros são caricaturas.
    Somente a caricatura consegue representar com fidelidade tipos como o grande ditador e as personagens que o cercam, tipos de fim de época histórica, espectros de um mundo desaparecido, incoerentes, absurdos, ridículos como moribundos que tentassem resistir à morte. Recriando situações, exagerando os traços marcantes do grande ditador, revelando-o através de sua mímica poderosa, Chaplin nos faz surpreender em sua própria gênese o fenômeno reacionário. Revela o seu conteúdo irracional, todo esse complexo de contingências biopsicológicas, recalques, instintos reprimidos, taras que a humanidade carrega dentro dela e de que dificilmente consegue se libertar. Em qualquer situação, Hinkel seria um antiprogressista, a sua ambição doentia requer um clima próprio para se transformar em tirania. O ambiente de ditadura é preparado, o aparato exterior, gestos, pessoas, coisas, tudo disposto para impressionar, espantar, estarrecer o povo. No meio de tudo isso, o desprezo pela criatura humana, valendo menos que um pára-quedas ou uma armadura de aço.
    Há cenas inesquecíveis, pelo ridículo e doloroso, o trágico doendo no fundo das situações mais cômicas. O medo que estarrece o barbeiro desmemoriado, ignorante da nova realidade, pobre diabo envolvido nas malhas de ferro da nova organização. Schultz, fugido da prisão, convoca um grupo de judeus para uma reunião. Um deles seria sacrificado: iria dinamitar o palácio do ditador. Com a sua lógica de bom burguês, Schultz se exclui solene, grave: “Eu estaria disposto mas, como sabem, não poderei ir.” Do meio daquela gente, da lógica natural, do bom-senso do homem do povo, uma pergunta espontânea, quase ingênua, fere o ar como uma lâmina: “Por quê?”
    O filme não provoca entusiasmos violentos, nem mesmo na cena final (quer quebrar um pouco do seu ritmo). Quando o barbeiro, substituindo por equivoco o ditador, transmite sua mensagem a todos os que, como ele, vivem oprimidos, a sua ação é mais interior, deixa fortes e fundas ressonâncias. Purifica, torna mais transparente o olhar com que olhamos os homens e as coisas, nossos próprios ridículos. E os ridículos alheios. Liberta interiormente, comunica essa liberdade interior que torna inútil pelo ridículo, não somente o grande ditador mas todas as ditaduras do mundo.
In: Jornal O Imparcial, Salvador, 23 de outubro de 1942, p.2.

Os estudantes e a guerra
    O Congresso de Guerra dos Estudantes, que agora se realiza no Rio, vem sendo orientado por um alto sentido patriótico. Vozes autorizadas como a do ministro Capanema, que falou em nome do presidente Vargas, como a do grande general Manuel Rabelo e, recentemente, do comandante Amaral Peixoto, levaram o apoio do Governo e do Exército aos nossos bravos moços estudantes. É o reconhecimento oficial do trabalho patriótico, da coragem e bravura dos estudantes do Brasil, pioneiros da luta contra o fascismo.
    Quando se escrever a história do presente momento brasileiro, quando se narrar para as gerações futuras as lutas do povo pela independência da pátria ameaçada pelo fascismo estrangeiro e nacional, haverá, com justiça, um capítulo escrito sobre o papel decisivo desempenhado nessa luta pela mocidade e, principalmente, pela mocidade estudantil,. O estudante brasileiro sempre teve uma tradição de grandeza intelectual e moral, mas de uma grandeza boêmia e desorganizada e desorientada... Os estudantes da atual geração desfizeram essa antiga tradição e demonstraram uma capacidade notável para a ação organizada e eficiente, orientados por uma aguda consciência política.
    Foram eles, os estudantes, liderados pelos estudantes baianos, os primeiros que deram o grito de alerta pela unidade interna, contra o trabalho divisionista da quinta-coluna e contra o perigo integralista. Foram eles os primeiros que lançaram o grito de revolta do Brasil quando os fascistas, ajudados pela quinta-coluna nacional, afundaram os nossos navios e mataram os nossos irmãos. Foram eles os primeiros que clamaram pela guerra e anteciparam o grito do povo à declaração de guerra do governo, ao lado das Nações Unidas. Foram eles os primeiros que clamaram pela união nacional em torno da política de guerra do presidentes Vargas, como o único e verdadeiro caminho para a vitória do Brasil contra o fascismo. Foram eles os primeiros que se reuniram em organizações patrióticas para orientar e esclarecer o povo e ajudar o esforço de guerra. Foram eles os primeiros à frente de todas as campanhas patrióticas. E os estudantes vêm realizando todas essas tarefas dentro de um espírito de serenidade, coragem, firmeza e disciplina, que falam bem alto da seriedade de suas convicções.
    Hoje, muitos desses estudantes, veteranos da luta contra o fascismo, estão convocados para o serviço militar e vestem a farda do nosso Exército, e se preparam para a luta nos campos de batalha onde a segunda frente dos povos livres exige a participação do Brasil, com a mesma decisão e firmeza com que lutaram nas campanhas civis.
    O Congresso que agora se realiza no Rio é mais um passo, e um passo decisivo, na luta do estudante brasileiro. Desse Congresso resultará uma maior unificação das atividades dos estudantes nos vários Estados, uma maior e melhor organização para a mobilização total da massa do estudante brasileiro e de todo o povo brasileiro contra o fascismo. Desse Congresso sairão os estudantes mais esclarecidos, mais aptos para levantarem até o fim a luta pela independência da pátria e liberdade dos povos.
    Que eles continuem mais firmes e desassombrados, esses moços cujas atividades políticas revelam uma pureza despida de qualquer interesse individual, esses moços odiados somente pelos que têm compromissos com o fascismo, esses moços amados pelo povo, honra e orgulho do Brasil, que possui uma tão bela mocidade.
In: Jornal O Imparcial, Salvador, 27 de julho de 1943, p.3.




Resgate de sua Obra
Lançamento do Livro Coração Militante



O livro Jacinta Passos, Coração militante, lançamento conjunto das Editoras Corrupio e Edufba em junho de 2010, reúne todo o material encontrado a respeito de Jacinta Passos. O livro contém os 4 livros de poesia publicados em vida por Jacinta, entre os anos de 1942 e 1958 – Nossos Poemas, Canção da partida, Poemas políticos e A Coluna –, todos lançados em edições pequenas, há muito esgotadas, como esgotada também está a segunda edição do Canção da partida, de 1990. Contém ainda poemas esparsos de Jacinta, originalmente publicados em jornais e revistas, jamais reunidos em livro.
O volume apresenta ainda inéditos da escritora, tanto em prosa quanto em verso, manuscritos por ela nos últimos anos de vida, quando esteve internada em um sanatório para doentes mentais. E traz seus artigos publicados em jornais baianos das décadas de 1940 e 1950, nunca editados em livro.
Jacinta Passos, Coração militante reúne também toda a fortuna crítuca que foi possível localizar sobre a escritora, um alentado conjunto de artigos assinados por críticos do porte de Antonio Cândido, Mário de Andrade, Gabriela Mistral (Prêmio Nobel de Literatura em 1945), Roger Bastide, Sérgio Milliet, Aníbal Machado, Paulo Dantas e José Paulo Paes, entre outros, os quais chamam a atenção para a importância da obra da poeta.
O volume traz um conjunto de estudos inéditos sobre a obra de Jacinta, escritos especialmente para esta edição, de autoria dos intelectuais e críticos Ângela Baptista, Florisvaldo Mattos, Ildásio Tavares, Gerana Damulakis, Guido Guerra, Hélio Pólvora, Fernando Paixão e Simone Lopes Tavares. Estes novos estudos lançam olhares contemporâneos sobre a obra e a vida da escritora, capazes não só de atualizar a reflexão sobre ela, como de fornecer pistas e sugestões para futuros estudos, já que Jacinta Passos é um rico tema de estudo ainda em aberto.
O livro contém uma alentada biografia de Jacinta, escrita por sua filha, Janaína Amado, que é historiadora e também a organizadora do volume. Baseada em minuciosa pesquisa, a biografia contém diversas informações e revelações sobre a existência de Jacinta até agora desconhecidas do público e dos estudiosos.
Com um total de 580 páginas, o volume é complementado por um caderno de fotos e pelos belíssimos desenhos do grande artista Lasar Segall, feitos originalmente para a primeira edição do segundo livro de Jacinta, Canção da partida, publicado em 1945. O volume atual reúne os 5 desenhos originalmente publicados, e mais 6 estudos do artista, que permaneceram até agora inéditos.
Jacinta Passos, Coração militante pode ser adquirido no site da Edufba (mande um e-mail, que eles orientam como comprar o volume), estará disponível em livrarias universitárias e, em breve, também nas grandes livrarias do país, concretas e virtuais. Boa leitura, bom mergulho no universo de Jacinta Passos!

[Assinatura de Jacinta Passos]
 
 Crítica

Entre lirismo e ideologia (1)
José Paulo Paes (2)
    Canção da Partida foi publicado em 1945. Nos anos imediatamente anteriores, sua autora estivera ligada, na Bahia, a movimentos populares encabeçados por grupos de esquerda, o que deixou a sua marca em Momentos de Poesia (3). Não nos versos de inquietação religiosa escritos entre 1937 e 1940, mas naqueles dos dois anos seguintes, em que à inquietação religiosa se vem somar a humanitária. Quando saiu a Canção da Partida, Jacinta estava recém-casada com o escritor James Amado, militante do PCB, partido então na ilegalidade e a que ela se filiou em fins de 1945. Mas nem seria preciso recorrer a dados de ordem biográfica para explicar a preocupação participante dos poemas da Canção da Partida. Eles eram, nisto, o espelho da consciência eminentemente social de uma época a que a resistência antifascista e as agruras da guerra haviam ensinado o sentido prático dos versos de John Donne acerca de que “homem nenhum é uma ilha, completa em si; cada homem é uma parte do continente, uma parte do todo”.
    É o generalizado sentimento de solidariedade dessa época, o seu sonho de um mundo só, tão depressa desmentido pela realidade de pós-guerra, que se reflete na Canção da Partida. Isso não quer dizer estejam dele ausentes certos exclusivismos de partido. [...]
    Os vícios técnicos da demagogia em que, no arrebatamento místico de sua adolescência, incorreu mais de uma vez a poetisa de Momentos de Poesia, estão felizmente ausentes da Canção da Partida. Se aqui se faz sentir ainda um certo ar profético, ao que parece substancial à poesia politicamente idealista, bem como um certo pendor pelas invocações, estas de índole mais afetiva que oratória, um e outras nada têm a ver com qualquer piedade vicentina, originando-se antes de um sentimento de fraternidade que, não sendo exatamente “duro”, adjetivo aliás incompatível com a sensibilidade feminina, é sem dúvida verdadeiro, desde que se dê a este segundo adjetivo, como cumpre em se tratando de arte literária, a acepção de convincente. Tenho pra mim que o poder de convencimento dos 18 poemas enfeixados na Canção da Partida advém sobretudo do seu timbre inconfundivelmente lírico, a que não falta de vez em quando, por amor da variedade, uma nota de sátira.
    Ao fazer-se uso de um conceito tão fluído quanto o de lirismo, convém ter em mente, com Hegel, que “o conteúdo de um poema lírico é (...) a maneira como a alma, com os seus juízes subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago desse conteúdo” (4). Foi essa lírica tomada de consciência de si no próprio ato de exprimir-se que salvou Jacinta Passos do escolho das generalizações retóricas em que, por equivocadamente fiéis às abstrações de uma ideologia, naufragaram outros poetas, como ela animados – para repetir as palavras com que Roger Bastide saudou a Canção da Partida – do mesmo “sentimento da miséria dos homens, da solidariedade no sofrimento”, do mesmo ideal de “um mundo mais justo e mais fraterno”. Em vez de simplesmente tentar pôr em verso as palavras de ordem de uma doutrina política impessoal, cuidou ela de interrogar-se acerca das raízes do seu sentimento do mundo. Tal anamnese, de par com a matéria vincadamente pessoal do seu canto, que Aníbal Machado disse bem ir “da ternura mais íntima ao grito largo de libertação”, deitando assim por terra a falsa barreira entre o individual e o coletivo, lhe daria, de quebra, o instrumento lingüístico mais adequado para exprimi-la, qual seja a singeleza folclórica das cantigas de roda e de trabalho. [...]
    O ferrete da condição feminina, de que já encontramos vislumbres críticos na “Canção simples” e na “Canção das mães”, é alusivamente referido nesta passagem onde o cediço símile da “canção do exílio” serve para ironizar a liberdade vigiada da mulher dentro dos limites do estereótipo em que a encarcera o desejo masculino:

    Menina, minha menina,
    carocinho de araçá,
    cante
    estude
    reze
    case
    faça esporte e até discurso
    faça tudo o que quiser
    menina!
    não esqueça que é mulher.

    Minha terra tem gaiola
    onde canta o sabiá.


    Mesmo na série “Três canções de amor”, de notável limpidez e despojamento de expressão, o abandono amoroso não exclui uma consciência crítica diferenciadamente feminina. A primeira canção, que desenvolve uma parlenda infantil, Eu fui por um caminho./ Eu também./ Encontrei um passarinho./ Eu também, aponta no amor menos a segurança matrimonial do ninho que os riscos de uma aventura a dois, um vai-e-vem sujeito, como tudo, a mudanças e rupturas: Podes virar um passarinho./ Eu também. Na segunda canção, motivos de contos de fadas configuram o amor como gruta sombria em cujo recesso se embosca a vontade proprietária do homem:

    Nunca se fie no seu sono,
    sono de El-rei, meu senhor.
    Não queiras nunca ser dono,
    negro!
    Ah! negro do meu amor.


    Em “Chiquinha”, o tema da sujeição feminina se historiciza num desfile de séculos e o corpo-mercadoria da mulher vai assumindo seus diferentes avatares: escrava do Egito, prostituta da Mesopotâmia, pária da Índia, odalisca da Arábia, matrona-serva de Roma, mistério e tabu do Medievo, ventre paridor de escravos na aurora dos tempos modernos, operária da era da máquina – a mesma máquina que, ao por abaixo as fronteiras / do lar, doce lar/ – prisão milenar, trás afinal ao corpo,/ cansado,/ explorado dessa obstinada metamórfica Chiquinha uma esperança de libertação.
    É bem de ver que o sentimento libertário difuso por toda a Canção da Partida ecoa menos as teses de uma ideologia ou as palavras de ordem de um partido que a voz de uma sensibilidade a fazer-se consciência no próprio ato de se enunciar por via da indissolúvel unidade de vivência e expressão característica do lirismo. O timbre inconfundivelmente feminino dessa voz, ao mesmo tempo que lhe garante a autenticidade, a singulariza no quadro da nossa poesia participante ou engajada. E dentro da mesma ordem de idéias, impõe-se ainda lembrar a componente maternal dessa feminilidade, que já apontava nos Momentos de Poesia. Ela vai avultar na Canção da Partida, quando mais não fosse pela ênfase ali dada ao mundo da criança, mundo do qual, por força da tarefa a ela confiada pela maternidade, de ter de acompanhar passo a passo os primeiros anos de vida dos filhos, a mulher está muito mais próxima do que o homem. A ternura de que a infância é o objeto na Canção da Partida não fica restrita à esfera do individual. Tanto quanto a feminilidade de que provém, reveste-se de implicações sociais, mesmo nos momentos em que menos seriam de esperar, como na “Cantiga de ninar”, onde a refrões e motivos de nanas brasileiras tradicionais vem-se juntar um novo ingrediente utópico-político:

    Senhora Onda do Mar
    vestida de verde com franjas de luar.
    ninai meu filhinho fechai seu olhinho
    seu soninho velai
    que mamãe precisa fazer com papai
    Senhora Onda do Mar,
    um planeta novo para neném morar.


(1) Texto escrito especialmente para a segunda edição de Canção da partida: PASSOS, Jacinta. Canção da Partida. (Salvador: Fundação das Artes, 1990, p. 9-28. Do profundo estudo original de José Paulo Paes, foram escolhidos alguns trechos, para esta edição do “Cultural”.
(2) O paulista José Paulo Paes (1926-1998) foi um dos mais respeitados poetas, críticos literários e tradutores do país na segunda metade do século XX.
(3) O autor refere-se ao primeiro livro de Jacinta Passos, publicado em Salvador, em 1942. A próxima nota é do texto original de José Paulo Paes.
(4) Apud Massaud Moisés,
Dicionário de Termos Literários. S. Paulo, Cultrix, 1974, p. 309.

O poeta e a poetisa (1)
Antonio Candido (2)
    Bem diferente é Canção da partida, da sra. Jacinta Passos (S. Paulo, Edições Gaveta, 1945). A jovem poetisa baiana passa de uma concepção totalmente diversa da de seu colega pernambucano. Os ritmos populares, a melodia elementar e o canto de esperança formam a matéria de seu livro. Em vez de criar um mundo à margem do nosso, a sra. Jacinta Passos mergulha de alma e corpo nos ritmos e nas realidades que a vida oferece. Do ponto de vista plástico o mundo lhe basta tal qual é; a sua sensibilidade esposa ardentemente as formas da vida e encontra nelas um deleite sem maiores exigências. O seu desejo de transformação é menos estético do que social, por isso em vez de se deter no estudo das formas como o sr. João Cabral, procura sempre o conteúdo humano das experiências. Canta recordações, lembra cenas e fatos, dá expansão aos sentimentos, se exalta nas profecias e no desejo de transformar a vida:

    Levantai-vos, párias de todo o mundo!
    Não vedes? Ela vem vindo, a Estrela do Oriente,
    alta, bela, imponente, os pés plantados no chão,
    traz o fogo no olhar e uma foice na mão.


    Este tom solene e meio profético me faz lembrar as poesias da primeira fase da sra. Jacinta Passos, de que ela guardou a austeridade formal e a elevação de tom. Prefiro-a, todavia, nos poemas de metro curto, onde revela uma imaginação mais fresca e um encantamento rítmico cheio de seiva folclórica.

    Urupemba
    urupemba
    mandioca aipim!
    peneirar
    peneirou
    que restou no fim?

    Peneira massa peneira,
    peneira peneiradinha,
    (Ai! vida tão peneirada)
    peneira nossa farinha.


    Para a sra. Jacinta Passos o mundo do exterior e a vida existem com uma soberania à qual não há fugir. Daí o seu apego às recordações, ao som das palavras, aos ritmos de movimento, à associação das imagens visuais e auditivas. Não se pense, todavia, que a sua poesia seja barulhenta e colorida. Há nela zonas de silêncio e de ternura, a fazerem contraponto com a relativa exuberância da maioria dos poemas. Todavia, o tom normal dos versos é a exaltação e o movimento – imagens que se sucedem em borbotão, visões ampliadas da realidade. Mesmo nos poemas de amor há entusiasmo e ruído:

    Somos amantes
    queremos amar!

    Hurra!


    Se o adjetivo não fosse tão vulgar, eu diria que Canção da Partida nos revela uma poesia dinâmica. Os seus versos estão sempre se deslocando em planos diversos; vertigem de ritmos, desejo de mudança social, projeção no futuro, volta ao passado. Lendo-os, sentimo-nos envolvidos por uma atmosfera viva e opulenta, criada pela sensibilidadede uma poetisa cujos pés se fincam resolutamente na realidade experimentada. Este senso de apego às coisas e às pessoas talvez seja responsável pelos defeitos do livro, ou seja uma certa vulgaridade discursiva, um sentimentalismo por vezes fácil demais e, não raro, uma demagogia que a autora não sabe evitar. Mas, por outro lado, é também a ele que devemos a sugestão dos bons poemas, que formam a grande maioria do livro. Poemas como o admirável "Canção da partida", que abre o livro, ou "Canção simples", que o encerra. Penso que a sra. Jacinta Passos se firmou com este livro numa posição de primeira plana na moderna poesia brasileira.


(1) Publicado originalmente no jornal “Diário de São Paulo”, 13 de dezembro de 1945. O artigo tem esse título porque sua primeira parte, aqui suprimida, analisa o livro O Engenheiro, de João Cabral de Mello Neto.
(2) Antônio Candido de Mello e Souza é um dos mais respeitados estudiosos e críticos de literatura do país. Este texto faz parte das críticas literárias que, desde 1940, publica imprensa brasileira, sobre os autores e livros que lhe chamaram a atenção.



[Com a filha Janaína, em 1948]
Conheça mais desta Rara Mulher- Jacinta Passos em: 




[Janaína Amado*,escritora, historiadora e filha de Jacinta Passos]

3 comentários:

  1. Obrigada por nos dar a conhecer esta Mulher, de fato Rara.Nunca ouvira falar dela. Que bom saber sua história-tão sofrida , e sua luta politica.
    Parabéns a filha por recuperar a memoria de sua mãe.
    Laura Arraes Braga

    ResponderExcluir
  2. Tenho um blogue, no qual faço análise literária e posto nomes novos e antigos - "Literatura em vida 2" (http://literaturaemvida2.blogspot.com) - e, pesquisando sobre a escritora Jacinta Passos, sobre a qual pretendo fazer uma postagem brevemente, cheguei a seu blogue e a sua postagem, o que me encheu de satisfação, pois ela foi uma grande escritora e grande mulher.
    Também gostei de aprender sobre a figura anterior, chamada por você de "A primeira hippie brasileira." Suas postagens são muito cuidadosas e aprofundadas.
    Eliane F.C.Lima

    ResponderExcluir
  3. fiquei curioso pelo sobre nome passos.

    ResponderExcluir

Obrigada por sua visita.
Boas Leituras!